A incrível história da marquesa
que se dedicou aos pobres
e fez um vinho icônico, dos reis
Por José Petit Rodrigues
Se
eu fosse o Papa Francisco, abria uma garrafa de Barolo, dava uma examinada no
processo de beatificação de Giulia Falletti di Barolo e
tornava essa excepcional mulher em santa.
Francesa, Juliette-Françoise-Victurnienne de Colbert-Maulévrier nasceu em família aristocrática em plena Revolução Francesa , tendo vivido na
corte. Mas foi em 1806 que Napoleão Bonaparte, nada menos que ele, patrocinou
seu casamento com o marquês Carlo Tancredi Falletti di Barolo,
um piemontês que foi levado para a França ainda criança.
Os
tempos eram agitados e Napoleão caiu em 1815. Um ano antes, os marqueses de
Barolo se instalaram em Piemonte, na Itália, e Juliette italianizou seu nome para Giulia. E foi aí que ela começou a ganhar
projeção, assumindo uma vida bem parecida com a de Santa Edwiges. Ricos,
passaram e incentivar a cultura, mas o mecenato não bastava. A alma puramente
cristã de Giulia desabrochou para a caridade.
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Comune di Barolo e o castelo dos marqueses ao fundo |
Era
um tempo em que havia prisão civil e não pagar uma dívida era o caminho para a
cadeia. Com isso, numa época patriarcal, as famílias se desintegravam. Começou
patrocinando dignidade aos presos, com fornecimento de comida e roupas
decentes, além de higiene nos presídios. Foi nomeada superintendente honorária
das prisões, tornando a prisão de Turim modelo, graças ao regulamento interno
que criou e que foi colocado em discussão com os prisioneiros, que o aprovaram
por unanimidade.
Mas
esse trabalho ainda não era suficiente. A prisão do patriarca deixava a família
na miséria e ela percebeu que teria de ampliar suas ações. Era preciso oferecer
assistência alimentar, educacional e médica à população. Cuidou também das mães
jovens, das prostitutas e das vítimas. Além de escolas, fundou um abrigo para
mães solteiras.
O
marques de Barolo sempre foi seu parceiro nessa atuação social e teve uma forte atuação política voltada sempre para o social, o que o fez ser reconhecido como servo de Deus pela Igreja Católica. Atuou muito na epidemia de cólera de 1835, financiando hospital e auxiliando
doentes e seus familiares. Morreu três anos depois, vítima da doença, e Giulia
continuou sua caminhada cristã. Viúva, voltou-se ainda mais à caridade, até
morrer.
O
que a marquesa tem a ver com o mundo dos vinhos?
Pois
é. Provavelmente o único desconforto que a marquesa de sangue francês tinha era
aturar o vinho tipo caseiro que a região produzia com a uva Nebbiolo, que em
1787 recebeu a seguinte definição:
“Doce,
como o aveludado Madeira, adstringente no paladar como Bordeaux e festivo como
Champagne”. O autor? Thomas Jefferson, que depois viria a ser presidente dos
Estados Unidos.
Diz
a lenda que, tempos depois de se mudar para Piemonte, a marquesa sentiu
saudades da terrinha (ou dos vinhos franceses?...) e resolveu melhorar o vinho
da região. Chamou seu amigo francês, o enólogo Louis Oudart, para cuidar disso. Há controvérsias, mas fico com essa versão.
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Safra 1895 bem guardada |
A
então rústica nebiollo passou por um processo de vinificação rigoroso,
descansando em barricas de carvalho francês, como se fazia na França. Nasceu
daí o famoso Barolo, chamado de “vinho dos reis, rei dos vinhos”.
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O rei recebia uma dessas por dia |
Tem
uma historinha também a esse respeito. Numa visita ao rei do Piemonte, Carlos
Alberto Sardenha, a marquesa ouviu dele a reclamação de que ainda não conhecia
os vinhos dela, que ganhavam fama. A partir daí, ela passou a mandar uma
barrica diária do Barolo para o rei, que gostou muito. Um ano depois, eles de
reencontraram e ela ouviu outra queixa: “você só mandou 325 garrafas. E as
outras 40?”. E respondeu de pronto: “teve a quaresma...”
Uma
visita à Marchesi di Barolo, 200 anos depois
Um
ótimo programa para quem está no Piemonte é visitar a pequena Barolo, terra dos
grandes vinhos com o mesmo nome. E ali poderá conhecer a Marchesi di Barolo, a
cantina construída pelos marqueses e que está lá, inteirinha, inclusive com os
grandes tonéis com mais de 200 anos.
Na
visita, que antecede a uma degustação digna dos reis, dá para ter a dimensão do
grande projeto que transformou a uva nebbiolo no icônico barolo. O cuidado com
o descanso, a guarda, a refrigeração do vinho é surpreendente para aquela
época.
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As barricas atuais |
Quando
a baronesa morreu, sem herdeiros, doou todo seu patrimônio para a entidade
social que fundou, ligada à Igreja Católica. E assim ficou até 1929, quando o
governo proibiu que a igreja tivesse bens materiais. Foi assim que o enólogo
Pietro Abbona adquiriu a vinícola, mantida até hoje pelos seus
descendentes, que honram o ideal dos marqueses de Barolo.
Aqui,
fica uma pergunta: se você fosse o Papa Francisco não santificava Giulia
Falletti di Barolo?